Ser ou não ser?

Muitas filosofias, principalmente as orientais, dizem que devemos nos livrar do eu. Propõe-nos métodos para anularmos o eu.O que quer dizer então a anulação do eu? É a noção de eu que construímos ao longo da vida, é a isso que se referem e é essa noção de eu construída que devemos abandonar.Qual o método para nos livrarmos do nosso eu construído, condicionado, cheio de sofrimentos?

Não existe método para investigarmos quem somos. Podemos somente olhar com plena atenção para o que sentimos, pensamos; para como agimos, reagimos; para nossas projeções, ilusões, expectativas, desejos; para os nossos medos, ansiedades e dúvidas. Podemos investigar quem somos e como somos, ninguém pode nos responder isso, a não ser nós mesmos, mediante nossa própria investigação.

Nem Buda, nem nenhum outro iluminado, pode nos dizer quem somos, do que está além do nosso eu construído, fragmentado. Essa verdade tem que ser vista por cada um de nós. O que fizeram foi uma tentativa de explicar o que aprenderam investigando a si mesmos, mas temos que lembrar que a palavra não é a coisa.
Ao contarem suas vivências em palavras, foram criados métodos na tentativa de ensinar o que só pode ser descoberto por si mesmo. Lembremos que as religiões e filosofias são sistemas de conhecimento, portanto ideias. E as ideias apontam para as coisas sem as serem.

Não temos outra saída para descobrir o que existe além da noção de eu, a não ser olharmos por nós mesmos, para o que somos: ideias, pensamentos, sensações, emoções, sentimentos, projeções, expectativas, dores, medo e etc. Observemos e investiguemos o que nos desperta certas emoções, vejamos se as resistências que criamos para mantermos nossos desejos ativos não contribuem para não olharmos para os fatos como eles realmente são.
O quanto de julgamento e conceitos pré-concebidos não estão envolvidos quando olhamos para algo ou alguém. Quanto de influência das nossas experiências passadas usamos para olhar para o novo?

Olhemos para todos os nossos hábitos, pensamentos, autoimagem e vejamos como construímos a nossa noção de eu. Quantos condicionamentos e reações impulsivas surgem para a manutenção do eu, do eu construído?
Não temos energia para viver nada novo porque gastamos grande parte dela para manter o castelo que construímos sobre e para nós.

O que interessam os discursos e ensinamentos dos grandes mestres se não pudermos vivê-los? Se não colocarmos à prova o que disseram e descobrirmos por nós mesmos, vivenciarmos o que foi dito?
Se apenas aceitarmos escutando e lendo o que foi dito e escrito por eles, estamos estudando mais uma teoria, mais um método. E, ambos, são apenas ideias, pensamentos. Não precisamos de mais métodos, teorias, filosofias e religiões para compreendermos quem somos e como somos. Basta que nos olhemos com bastante atenção, que estudemos a nós mesmos, colhendo dados de todas as nossas construções mentais, da noção de eu que construímos e que tanto nos custa manter.

Conseguindo perceber as nossas construções, condicionamentos e hábitos mentais e psicológicos, vamos entendendo quem somos. Entendendo quem somos, vemos que os outros são como nós: construções, invenções, pensamentos, ideias, teorias e condicionamentos. Que inventamos o que somos e também o que os outros são. Que inventamos a realidade.

A realidade que vivemos é uma construção mental.
Ela é pessoal e é por isso que sofremos.
Queremos que os outros nos vejam e vejam a vida como nós vemos e sofremos quando o outro tem uma visão da gente, da vida e dele mesmo diferente da nossa.
Queremos ter certezas e segurança, mas esquecemos de que tudo aquilo que acreditamos são invenções nossas, são nossas ideias, pensamentos e teorias.

A verdade é que não existe certeza, nem tempo (o tempo é também uma construção mental, aceita coletivamente, mas sobre isso eu falarei em outro texto) e que só podemos descobrir sobre nós mesmos, sobre a vida, observando atentamente as coisas como são, sem nossas teorias e projeções. Essa investigação é individual, sem método, sem certeza. Vivida individualmente.

Comecemos agora a observar o quanto pensamos e reagimos automaticamente; as consequências emocionais e factuais. Observemos nossos pensamentos e sentimentos quando eles aparecerem, investiguemos de onde e como surgem. É assim que vamos entendendo quem somos, o que inventamos, o quanto nos repetimos. Vamos descascando cada construção de eu e nos aproximando cada vez mais da verdade.
Deneli Rodriguez.


Deneli Rodriguez

Pensadora, escritora e artista. Menção honrosa Itaú Cultural com seu texto "A Menina Iluminada". Concorrente aos prêmios Oceanos e Kindle de literatura. Livros: A Menina Iluminada e A Buda. Filmes: Charlote SP, primeiro longa metragem brasileiro filmado com celular, dirigido por Frank Mora; e Deneli, curta metragem vencedor de prêmios internacionais dirigido por Dácio Pinheiro.

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